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domingo, 1 de dezembro de 2013

Quando nós não somos (apenas) vítimas.

Ou deveria amar você — sempre (fonte)

Quando eu descobri o feminismo, acreditei que feministas eram sempre pessoas corretas e coerentes. Não que eu acreditasse na perfeição, mas é que eu presumia que quando uma pessoa se dizia feminista, é porque ela já tinha desconstruído diversos preconceitos dentro de si e que se esforçava para viver segundo seus princípios. Eu acreditava que ser feminista era a mesma coisa que ser uma pessoa decente.
Eu estava tão, tão, tão, tão errada.

Ver situações completamente surreais de perceber feministas se recusando a perceberem transfobia ou racismo em seus argumentos, feministas perseguindo feministas de uma maneira totalmente insana, a própria contradição nas criticas, a negação de receber críticas pertinentes ao movimento e a constante sensação de que temos que estar em alerta - porque não nos sentimos seguras, mesmo dentro do movimento: isso é estranho, é bizarro e é horrível. Não tem nada mais horrível do que perceber que seu próprio movimento, do qual você faz parte, tem um milhão de problemas - tantos problemas que você chega a se questionar se gostaria de se identificar como feminista também, porque não quer estar associada à isso. Não mais.

Mas eu continuo sendo, porque feminismo não é sobre essas pessoas, mas é sobre uma ideia na qual eu acredito: a de empoderar mulheres diante da subjugação de gêneros, a de romper com os padrões que nos limitam à uma dicotomia binária de homem/mulher, a de subverter todas as noções de gênero que conhecemos. Eu acredito que é possível destruir o patriarcado, mas não acredito que é possível fazer isso e continuar mantendo diversas outras formas de opressão - e é por isso que acredito que é urgente o feminismo, como movimento, perceber que não pode agir sozinho. Mulheres não constituem a única classe oprimida do mundo. Mulheres não são apenas mulheres: elas também são ricas ou pobres, brancas, pardas ou negras, índigenas, asiáticas ou fazem parte de qualquer outra etnia e/ou raça que não conhecemos bem, heterossexuais ou homossexuais, bissexuais ou assexuais, possuem deficiências - e as próprias deficiências são numerosas, cada uma delas formando uma classe a parte.

Nenhuma pessoa é apenas uma característica, e o patriarcado não é o único mal do nosso mundo - e a nossa falha, enquanto feministas, é não perceber isso.

Nós não somos um movimento perfeito. Não somos perfeitas. Não vivemos em um vácuo. Nós nos contradizemos. Nós falamos merdas e não nos desculpamos depois. Nós não queremos ouvir críticas porque elas são dolorosas e porque são verdadeiras, e não queremos ser acusadas de não assumirmos nenhuma responsabilidade e, sim, é mais fácil para gente esquecer que o fato de sermos mulheres não nos isenta da responsabilidade perante outras minorias.

Talvez... nós nos acostumamos a nos considerarmos vítimas por tanto tempo que não queremos aceitar que há situações que não somos vítimas, mas algozes.

É difícil viver em um mundo que as coisas não são preto no branco, não é mesmo? Eu sei que é. Mas é o mundo em que vivemos: há os tons de cinza e enquanto mesmo o homem mais explorado terá a sua escrava em casa, e mesmo essa escrava exercerá seu poder quando expulsar a sua filha de casa porque ela lhe disse que não era mais João e sim Maria. Vê? Não é porque o homem proletário é explorado por ser mais pobre que deixa de oprimir sua esposa, e não é porque essa esposa é oprimida por ser mulher cis que deixa de oprimir sua filha por ser mulher transgênera. As opressões não se atenuam, não se anulam, não se minimizam, ao contrário: elas se acumulam cada vez mais. Nada é mais eficiente do que uma sociedade cuja estrutura permite que pessoas oprimidas possam oprimir outras, dependendo das circunstâncias - e é tão conveniente perceber apenas as situações nas quais somos as vítimas, mas ignorar aquelas em que somos os algozes, não é?

Não somos as vítimas no período integral do nosso tempo - e é fundamental percebermos isso.
Essa é a maior crítica que faço às feministas e eu odeio fazer essa crítica, mas acho importante: o nosso imenso egocentrismo de acharmos que tudo no mundo é sobre nós, de que somos a classe mais terrivelmente explorada, de que o nosso sofrimento é maior do que de qualquer outra classe explorada, de que somos tão exploradas que é impossível a nós explorar alguém e - o principal de tudo - que constituímos uma classe homogênea, onde vivenciamos as nossas opressões de modo mais ou menos parecido.

Como se ser uma mulher branca cis e hetero na França seja a mesma coisa que ser uma mulher negra lésbica e trans no Brasil.
Como se eu vivenciasse as dores de ser mulher do mesmo jeito que Carla Bruni.
Como se a CeCe vivenciasse a sua identidade de gênero feminina do mesmo jeito que eu.
Não dá.
Simplesmente... não dá.

"Oh, então isso significa que eu sou uma pessoa maligna porque sou hetero?"
Não.
"Ah, então quer dizer que ser uma mulher cis é um privilégio? Agora estupro corretivo e menores salários são privilégios?"
Não seja tão desonesta assim.

Deixe sua desonestidade para jogos de azar e variantes. Aqui, vamos ser pessoas legais e empáticas? Eu já ouvi que "daqui a pouco até ter buceta é transfobia" (alguma semelhança com "daqui a pouco ser hetero vai ser crime"? Um alô para a honestidade de vocês), já ouvi que mulheres trans são privilegiadas por não engravidarem, já ouvi que "não deveríamos criticar Lily Allen" porque o videoclipe fez mulheres negras se sentirem completamente desconfortáveis e objetificadas "porque ainda assim vídeos assim são importantes pro feminismo" e foda-se se ignoramos a questão racial, não é mesmo? Mas sabe de uma? Foda-se. Talvez eu esteja sendo cega; talvez eu esteja faltando com a sororidade; talvez eu esteja me recusando a entender vocês. Talvez eu esteja demonizando vocês.
Talvez.

Mas eu me pergunto como é que entramos nesse jogo de demonizarmos uma a outra. Como é que entramos nessa guerra em que nenhuma de nós vai vencer? Porque não haverá vencedores, no fim das contas, porque todas nós nos lascaremos na vida de algum jeito: seja nos matando por não suportamos carregar mais o peso de ser transgênera, seja assassinadas por ex-namorados com ciúmes doentios, seja levando tiros "acidentais" enquanto voltamos para nossas casas em bairros na periferia. Não há exatamente um destino feliz para quem conseguir vencer essas disputas dentro do nosso movimento, a diferença está apenas que algumas vão se foder (muito) mais e outras menos. No fim, todo mundo se fode (exceto os caras brancos heteros cis e ricos, ah, esses sempre estão vencendo na vida).

Eu preciso superar o meu constante desapontamento com o feminismo e entender que o fato de uma mulher ser feminista não significa que ela é uma pessoa da qual gostarei. E eu preciso lembrar dos meus princípios e eles são basicamente: eu quero fazer o que é certo e nada mais.

Não quero dar uma de hipócrita ou moralista, até porque é presunção demais supor que eu sou diferente de vocês, mais "íntegra" ou mais "honesta" ou qualquer coisa que valha. Assim como toda e qualquer pessoa, tenho minhas falhas e meus problemas, e digo/penso/faço coisas problemáticas. Não é um debate sobre a nossa integridade pessoal, não é sobre se estamos sendo corretas o tempo todo. Se trata sobre a nossa própria coerência e de respeitar os nossos princípios. É sobre se estamos conseguindo fazer conosco o que exigimos que outras pessoas façam, é sobre se sabemos ser humildes e reconhecer que não estamos certas o tempo todo e que erramos, e sobre saber pedir desculpas. Principalmente: saber pedir desculpas.

Então.

Não é exatamente um post original, inovador, nem estou falando nada de novo. Já disse isso milhões de vezes. Mas é necessário repetir isso milhões vezes milhões de vezes: nós precisamos reconhecer as nossas falhas. A nossa sororidade é seletiva, excluímos diversas categorias, fingimos que não podemos oprimir e usamos a nossa própria condição de oprimidas como desculpa para fingir que outras causas são menos importantes. E quando somos chamadas à atenção, nos recusamos a pedir desculpas. Dizemos que o problema não é com a gente. E fica tudo por isso mesmo.

Não deveria. Se somos o movimento acolhedor, seguro e aberto para as mulheres que afirmamos ser, não deveríamos fazer isso. Sabe aquela frase que não sei de quem é, mas que diz que a mudança começa em nós? Então.

Esse texto foi uma acusação? Eu não sei. Talvez. Se for, isso me incomoda? Não. Definitivamente não. Não é agradável para mim escrever esse tipo de texto, mas se eu não o fizer, sinto que passarei meus dias resmungando opiniões dadas pela metade, como se minha opinião fosse tão importante assim. Mas quem sou eu? Façam o feminismo de vocês. Façam como quiserem, porque não serei eu a ir direto no inbox de vocês e lembrar que tem coisa errada nessa equação. Vocês que sabem. Isso é só um blog e não é um blog de teoria feminista. Me perdoem se eu não sou tão acadêmica como deveria ser, se eu não estou aqui desenvolvendo nenhuma teoria social ou traduzindo feministas clássicas, me perdoem se tudo o que eu faço é escrever sobre as suas incoerências e, principalmente, me perdoem porque eu não dou a mínima para isso e continuarei fazendo isso enquanto continuar tendo disposição para tal coisa.

Se você leu até aqui e lembrou de determinadas situações que acontecia algo que eu me referi, bem, então você sabe o que eu quero dizer. Acredito que boa parte das pessoas que visitam meu blog já estiveram em uma situação que perceberam os diversos feminismos que existem e suas diferenças. Espero sinceramente que você pense com carinho nessas coisas que eu disse, e em todas as situações que você percebeu essas coisas, e pense em como é essencial que nós sejamos honestas quanto ao que acreditamos e seguimos. Isso não é sobre quem é a má e quem é a boazinha, mas sobre pessoas que estão se sentindo machucadas e pessoas que estão machucando e não querem perceber isso.

Isso não é sobre quem está errado e quem está certo. Não é sobre seu orgulho.
É sobre perceber porque que mulheres estão preferindo se preservar de outras mulheres autodenominadas feministas e então fazer algo a respeito. É sobre respeitar essas pessoas e entender que elas não estão se resguardando porque estão paranóicas, mas porque foram machucadas e então respeitar esses sentimentos. É sobre perceber o quão covarde é da nossa parte usar a nossa identidade feminina como escudo para fecharmos os olhos para outros tipos de privilégios e opressões, e o quão estúpido é ficar na defensiva e ridicularizar as pessoas quando elas nos criticam. Não estamos sendo tão legais assim, então o que vamos fazer a respeito?

É sobre isso: o que vamos fazer a respeito diante das críticas legítimas ao nosso movimento?
Apenas isso:
o que vamos fazer a respeito das nossas falhas enquanto movimento político e social?

fonte.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Porque não faz sentido dizer que uma mulher é machista.

E porque pessoas brancas não sofrem racismo.

comercial antigo que achei no google
Eu passei muito tempo da minha vida acreditando em mulheres machistas. Acreditando que mulheres podem ser tão machistas quanto caras. Bem, hoje já não tenho essa opinião. Ainda não sou essa pessoa evoluída espiritualmente que consegue ser um amor e explicar de forma extremamente paciente para mulheres que demonstrem opiniões machistas, mas estou tentando melhorar. Ainda não consigo sentar, conversar de boa e ser mais paciente com uma mulher, e eu tenho dúvidas se conseguirei isso algum dia, mas eu estou constantemente lembrando à mim mesma de que é impossível existir mulheres machistas, assim como é impossível pessoas negras serem racistas. É um processo de aprendizado. Ainda chego lá.

A maior dificuldade que as pessoas tem de entenderem esse ponto é porque nós associamos machismo à uma mera opinião de que homens sejam superiores às mulheres. Então se cria páginas como Moça, Você é Machista veiculando esse tipo de pensamento: de que machismo se trata de uma opinião que, por acaso, é a que a sociedade tem. Como se machismo fosse uma "ideologia" que "basta pensar diferente". Como se o machismo fosse apenas uma linha de pensamento que vai contra as mulheres e é por isso que temos que mudar as coisas, e adotarmos uma linha de pensamento que iguale mulheres aos homens. Essa mesma linha de pensamento vai lá e veicula ideias de que feminismo se trata apenas de igualdade, sem pensar criticamente no que se trata essa igualdade. O que se torna muito curioso de se observar porque você verá feministas X veiculando ideias de que feminismo não é sobre mulheres superiores aos homens, e sim mulheres iguais aos homens, e então você vê outras feministas Y completamente ofendidas com essa ideia - e há essa diferença de opinião. Ao meu ver, se trata de um desentendimento que acontece porque nem as feministas X pensam criticamente sobre a ideia que elas estão veiculando, nem as feministas Y estão conseguindo explicar claramente o que elas querem dizer ao não gostarem dessa imagem que se perpetua.

Eu não posso e não quero culpar as feministas X. Eu fui uma delas por muito tempo (e vocês podem verificar isso pelos textos mais antigos desse blog e no de Pernície, por exemplo) até perceber, depois de alguma leitura, no quão mais crítica eu precisava ser sobre meu próprio movimento. Não acho que sair criticando elas como se elas fizessem tudo errado seja o caminho.

Então, temos os seguintes tópicos:
a) Mulheres não podem ser machistas.
b) O feminismo não se trata de "igualdade" entre gêneros.

Por quê? Veremos:

1) Premissa errada um: machismo não é apenas uma "ideia" errada.

Eu sei que se vocês forem na Wikipedia ou algo parecido, é algo assim que encontrarão. Mas na prática, a coisa funciona de uma maneira um pouco diferente. Eu gosto de pensar que o machismo [homens legais, fortes, corajosos que morreram em guerras > mulheres inúteis, fracas, donzelas em perigo] é uma crença que só se sustenta dentro do patriarcado, e uma crença fundamental para que o patriarcado se perpetue. Quando uma pessoa é machista, o que ela está fazendo é se servir de uma crença corrente para oprimir outras pessoas. Porém uma mulher não pode oprimir a si mesma. Ela não tem como oprimir outras mulheres por ser mulher. Ela não tem esse poder, porque mulheres não tem esse poder. Ela pode até se erguer, dizer que é machista e repetir mil vezes que mulher tem que ficar em casa e homem no trabalho, mas ela nunca será a beneficiária disso. Quem ganha com esse jogo é o homem, e só o homem.

Sim, eu entendo que é quase inevitável surtar e dizer que uma mulher é machista quando você vê uma garota reafirmando que machismo é legal e que feministas são chatas bobas cara de melão, e eu sei que dá uma louca vontade de sacudi-la até ela perceber o que está fazendo, mas é preciso lembrar que ela, por mais que esteja demonstrando ideias machistas, não é a beneficiária disso. Ela não vai receber nenhum agrado, não vai ser elevada ao mesmo status do seu opressor. Vai continuar a ser oprimida assim como qualquer outra mulher. Ainda vale apontar outro ponto: ser mulher é difícil. Ser parte de qualquer minoria é difícil. E pessoas querem se incluir na sociedade. Não todas, eu sei, mas uma maioria muito significativa tem necessidade de aprovação, necessidade de ser incluída, necessidade de ter suas ideias validadas. Considerando que nós somos educadas a sentir que precisamos de aprovação masculina o tempo todo, então uma mulher que perpetue ideias machistas não está fazendo mais do que procurar ser aprovada. Eu não sei vocês, mas por mais que eu fique maluca ao ver esse tipo de coisa, não consigo não compreender. Eu tenho que compreender. Eu preciso entender que é uma maneira que aquela mulher encontrou de sobreviver na sociedade: concordar com seu opressor e ficar na linha.

Então... vamos pegar outros exemplos. João é cis e é branco, e é gay. Ser gay é muito difícil para ele, porque sua família não gostou nadinha da história e ele vive cheio de culpa internalizada. João acha que "pintosas" são um problema para os gays. Ele acredita que se gays fossem todos "normais" e não ficassem saltitando por aí, espalhando purpurina com as cores do arco-íris, então os gays teriam muitos menos problemas de serem aceitos pela sociedade. Se uma pessoa heterossexual acredita nisso, bem, ela é homofóbica. Ela está oprimindo outras pessoas que são gays, porque ela tem poder para tal. A sociedade deu poder suficiente à pessoa heterossexual de oprimir outras minorias no campo "orientação sexual". Mas João não. João acreditar nisso não fará com que ele possa oprimir outros gays. Ele está constantemente se policiando para se enquadrar nas regras da sociedade e ser aceito por uma sociedade que não o aceitará de qualquer maneira. João não tem poder suficiente para executar essa homofobia contra si próprio, simplesmente porque a sociedade não lhe deu esse poder.

Porém João pode ser bifóbico. Se ele argumentar que bissexuais são pessoas indecisas e que são apenas "gays enrustidos que atrapalham o andar da carruagem", bem, está sendo bifóbico. João é branco e cisgênero, e é homem, e ele pode ser racista, transfóbico e machista. Ele tem poder suficiente para veicular esses tipos de opressão. Como um homem, ele pode oprimir mulheres, e como um homem cis, pode oprimir pessoas transgêneras. Nós vivemos em uma sociedade que consiste em dar poder às determinadas pessoas para oprimir outras. E embora haja uma classe composta de homens brancos, cis, hetero, etc que sejam como uma Irmandade dos Senhores Combos de Privilégios, ainda assim todas as outras pessoas restantes podem ter características que as façam ter uma parcela de "ser opressor". Eu, enquanto mulher, não sou a beneficiada pela misoginia. Se eu chamo outra garota de "vadia", eu não estou me beneficiando disso - uma hora eu vou receber o mesmo tratamento. Mas eu sou cis, e enquanto eu for cis, eu tenho pleno poder ser transfóbica que a sociedade me conferiu. O Estado com suas estruturas permite que eu invada privacidade de pessoas trans, pergunte à elas sobre seus órgãos genitais, deslegitime suas identidades e determine que seus corpos são errados - eu sou autorizada para ser transfóbica, porque eu me beneficio de um sistema transfóbico enquanto pessoa cis, recebendo todos os privilégios de uma sociedade cissexista.

Mas eu não recebo os privilégios de uma sociedade misógina ou de uma sociedade racista. Eu nunca receberei. Essa é a questão: você é a pessoa que está se beneficiando com essa parcela do sistema? Você é a pessoa que tem poder para oprimir outras pessoas? Se você tem esse poder, sim, você é machista, homofóbico, racista, etc. Se você não tem esse poder, bem, você está veiculando ideias referentes à um padrão que te odeia, te exclui e te ojeriza. Mas não, você não poder suficiente para oprimir outras pessoas - por mais que você ache que tenha.
essa eu achei no facebook, não sei quem fez
2) Premissa errada dois: feminismo não é sobre igualdade.
Esse é um dos pontos mais controversos, mas eu acho mais fácil de explicar. É fácil dizer aos caras para eles ficarem tranquilos que não estamos tentando instaurar nenhum matriarcado e escravizar todos os caras do mundo, que tudo o que queremos são apenas coisas como salários iguais e poder transar com quem quiser sem ter gente enchendo o saco. Isso é fácil. Tenho certeza que um monte de cara vai dar joinha porque, se você parar pra pensar, isso não soa tão ameaçador assim. Mas seu propósito para o feminismo é apenas, unicamente a igualdade? Eu não estou me referindo à igualdade nos termos das leis - eu acho que todo mundo tem que ser tratado pelo Estado da mesma maneira ou, talvez, nem existir um Estado fosse a melhor solução. Mas... o que é igualdade?

Com quais homens você está querendo igualdade? Para quais mulheres?
Essa é a pergunta que você deve responder para si mesma. E quando responder, você vai perceber porque o discurso do "feminismo é sobre querer igualdade" não abrange tudo o que queremos e necessitamos.

Talvez funcione para mulheres brancas, cis, hetero e classe média que querem ser igualadas aos caras brancos, cis, hetero e classe média. Mas não funciona pro resto, porque não é como se todas as mulheres estivessem no mesmo patamar de opressão e - surprise! - não é como se todos os homens estivessem no mesmo patamar dos privilégios. Nós temos que lembrar que mulheres são divididas em muitas categorias: elas são ricas e pobres, brancas e pardas e negras e asiáticas e indígenas, heterossexuais, lésbicas, bissexuais, pansexuais ou elas são cis e trans, e elas podem ter deficiências ou não. Cada segmento tem suas necessidades específicas sobre as quais ninguém pensa quando diz que é tudo sobre "igualdade". Caras também são divididos em um monte de categorias do gênero, e elas não estão em posições iguais. E ainda há as pessoas não-binárias que também estão divididas em todas essas categorias. Caras heteros não estão em posição igual à caras gays, e mulheres pobres são completamente marginalizadas em relação às mulheres ricas. Porém duvido que uma feminista que seja branca e rica queira ser equiparada aos caras negros e pobres, porque ela quer ser igualdade ao cara branco e rico que possui os privilégios que ela não tem. E tenho sérias dúvidas sobre ela pensar criticamente sobre os privilégios dela de ser branca e rica. Nessa vibe de todo mundo querer igualdade, mas sem especificar de quem para com quem, o que acontece? Hm, eu tenho uma hipótese e ela é:

as pessoas igualam erroneamente todo mundo como se a galera toda estivesse no mesmo barco.
surprise: não está.

Então quando vem uma feminista que é branca e rica fazendo todo um ativismo que ignora completamente as questões de cor e de classe, bem, eu não tenho como me sentir inserida. Não estou no mesmo barco que ela, por mais que sejamos ambas mulheres cis. Quando o foco dela é conseguir salários iguais aos caras brancos ao passo que ignora que mulheres negras recebem menos do que mulheres brancas (e vão continuar a receber menos mesmo em uma situação que as mulheres brancas recebam a mesma coisa que caras brancos, porque o racismo não está nem mesmo posto em conta, que dirá solucionado), ela está fazendo um feminismo que não atende todo mundo. Que seja. Mas é importante que nós percebamos esses detalhes. É importante que nos questionemos o que nós queremos dizer quando falamos de igualdade e é importante lembrar qual categoria nós temos em mente quando desejamos nos igualar à "algo". Eu preciso que essas diferenças dentro da diferença sejam lembradas e discutidas, e é preciso que as pessoas percebam que as pessoas simplesmente não são e nunca serão iguais, e não é esse o problema.

Não se trata de conseguir a simpatia dos seus opressores e então conseguir se sentar ao lado dele no trabalho e tomar um cafezinho, mas se trata de destruir um sistema que faça daquelas pessoas seus opressores. E isso é ameaçador. Isso é ruim para os opressores, porque eles querem se sentir como se te dessem um favor ao te aumentarem o salário enquanto criam um vagão especial no metrô. Eles ainda são seus opressores e pode ter certeza: uma parte da minoria até que pode conseguir uma "igualdade", mas isso não resolve o problema porque continua existindo uma classe oprimida por outra.

Eu não quero mais "igualdade". Cansei dessa merda. Ela não expressa tudo o que eu desejo, sinceramente falando, que é basicamente destruir tudo isso de uma vez e acabar com essa história de existir opressores e oprimidos. 
"você é um cara cristão, hetero e branco e pensa que está sendo oprimido? diga-me o quão duro isso é para você"
3) Lembrete número um: e é por isso que pessoas brancas não sofrem racismo.

Acredito que se você leu até agora, entende meus pontos sobre como isso não se trata de "ideias errôneas que podemos erradicar", mas de uma estrutura sobre a qual a nossa sociedade está montada. É por isso que mulheres não podem ser machista, e é por isso que pessoas brancas não sofrem racismo. A ideia de que machismo é apenas uma ideia errada, bem como racismo ou homofobia, faz com que a gente esqueça de como tudo isso é um sistema perverso para oprimir e torne a coisa toda algo genérico que qualquer pessoa pode sofrer. Então as pessoas convenientemente esquecem que racismo é estrutural, corroborada pelo Estado, historicamente perpetuada por pessoas brancas, e acham que é qualquer coisa ruim que se fale a respeito da cor de sua pele. E, cara, sabe de uma? Não é.

Racismo é opressão. Machismo é opressão. Transfobia é opressão. Homofobia, bifobia, lesbofobia são opressões. Gordofobia é opressão. E estou esquecendo de um monte de categorias aqui, mas acrescente-as mentalmente.

Você é branca e uma pessoa disse que tu tá muito branca e precisa tomar um sol? É algo idiota a se falar, mas não é racismo. Racismo é outra coisa. É opressão sistemática de um sistema que se beneficia mantendo pessoas negras na marginalidade. Você é uma pessoa magra e acredita sofrer opressão "gordofóbica"? Bem, se você é uma mulher, com certeza você está sofrendo uma opressão misógina - que acredita que mulheres devem se enquadrar em padrões restritos de beleza - mas não é gordofobia. Gordofobia é outra coisa e fala especificamente de como pessoas gordas são sistematicamente excluídas de empregos e tidas como pessoas doentes, feias, nojentas e completamente ojerizadas por médicos e matérias de revista.

É verdade que caras podem receber estilhaços de misoginia quando saem dos seus papéis designados - por exemplo, ao se assumirem gays [muito da homofobia é completamente misógino] ou mesmo fazerem qualquer coisa minimamente associada ao universo feminino. É verdade que uma mulher cis que tenha características tidas como masculinas pode receber dúvidas sobre sua identidade e ter sua privacidade invadida, o que pode significar reflexos da transfobia. Estilhaços, reflexos, tudo isso, porém, são uma parcela muito ínfima: as opressões tem alvos e eles são muito bem definidos.

Não assuma que sofra uma opressão que não sofre. As pessoas sofrem por diferentes motivos, desde por ser mulher na Índia até por ser uma pessoa baixinha em, sei lá, Nova York. Isso não significa que pessoas baixinhas sofrem opressão. Opressão é outra coisa.

Lembrem-se disso: opressão é mais que uma opinião ruim sobre alguém, opressão é estrutural, parte de um sistema que privilegiará certas pessoas em detrimento de outras. Opressão significa tornar o corpo dessas pessoas errados, estranhos e/ou repulsivos [e disfarçar com "é gosto pessoal"], significa exclui-las do mercado de trabalho de forma deliberada [disfarçar com uma questão de "o empregador tem direito de escolher o que quiser"], significa impor à essas pessoas um conjunto de regras que não existem para a classe privilegiada [exigir que mulheres sejam "puras" ou que pessoas trans se enquadrem completamente em seus gêneros de acordo com os moldes da sociedade], significa limitar o acesso de direitos básicos à essas pessoas [direito de ir e vir no caso de pessoas cadeirantes e cegas, direito ao aborto no caso das mulheres cis, direito à uma identidade reconhecida no caso de pessoas trans], enfim: eu poderia fazer uma lista imensa sobre o que significa opressão, mas acho que deu pra entender o sentido da coisa. Por isso não faz sentido uma pessoa branca afirmar que sofre racismo. Não faz. Não tem como.

E se você continua achando que sim, só devo supor que tu tem uma má fé do caralho.

4) Lembrete número dois: afirmar que mulheres são machistas abre brecha para culpabilização da vítima.

Eu odeio essa ideia de fazer dois pólos distintos nesse mundo de pessoas boazinhas versus pessoas más. Não acredito que dois mil anos atrás pessoas brancas e européias se uniram numa sombria assembléia e decidiram maquiavelicamente que iriam oprimir qualquer um que não fosse como elas. O fato de eu ser avessa à essa visão do mundo, porém, não faz com que eu acredite que não haja vítimas, por exemplo. Há a parte prejudicada nessa equação e se eu esquecer disso, estarei sendo escrota. E nós não precisamos dizer à uma vítima que ela é culpada de ser vítima. Não temos nenhuma necessidade de dizer à uma classe inteira que a culpa de determinada opressão sobre elas é inteiramente delas.

Quando você diz que uma mulher é machista na mesma medida que homens são, ignorando completamente que só os homens se beneficiam do patriarcado, ao passo que mulheres estão procurando a aprovação masculina, você está dizendo que a culpa do patriarcado é dela. Quando você diz que homofóbico nada mais é do que gay enrustido que odeia gays que se assumiram, você está jogando a culpa de toda a homofobia em cima da própria classe homossexual e ignorando completamente a responsabilidade das pessoas heterossexuais que formulam leis anti-gays e expulsam seus filhos de casa por serem gays. Quando você tenta justificar seu racismo dizendo que não é um grande problema porque "problema mesmo é racismo de negro contra negro", você está removendo a responsabilidade das pessoas brancas [cuja classe historicamente escravizou e oprimiu pessoas negras] e jogando-a em cima das pessoas negras.

Não estou aqui querendo polarizar o mundo entre as vítimas coitadinhas que só estão reproduzindo o preconceito e caras malvados e perversos. Isso se trata de responsabilidade. É completamente injusto culpar as classes que foram oprimidas por séculos da nossa história dos seus próprios males em uma esfarrapada tentativa de se livrar da própria culpa. Dizer que os padrões de beleza só existem porque estilistas gays odeiam mulheres ou que mulheres só se arrumam loucamente para deixar outras mulheres, porque caras "nem se importam" com celulites e afins, é basicamente transferir responsabilidades que não deveriam ser transferidas. Apenas... parem.

Sim, mulheres reproduzem comportamentos machistas, sim, negros reproduzem comportamentos racistas, sim, sim e sim, porque nós não nos criamos em um vácuo. Nós refletimos os valores da sociedade, e nenhum de nós é imune à isso. Porém não lave suas próprias mãos para culpar classes desfavorecidas. Não se isente de sua responsabilidade, não finja que não ganha com esse sistema, não diga que o problema não é com você. Porque é.

Você também faz parte do problema. Não esqueça disso.

5) Lembrete número três: mulheres trans não podem ser misóginas.

Apenas: não.
Se você é uma pessoa feminista e concorda aqui comigo que mulheres não podem serem acusadas de "machismo" por alguns argumentos daqui e por mais outros [tenho certeza que você deve pensar nisso melhor que eu], então deve concordar que mulheres trans simplesmente não podem ser misóginas.
Porque são mulheres.

Se você discorda, então você não concorda que são mulheres.
E nós temos um problema aqui.

Vejo feministas identificadas como "feministas radicais" acusarem transfeminismo de lesbofobia e misoginia, e são as mesmas que dizem que mulheres não podem ser chamadas de machistas. Sempre as vejo argumentando contra páginas como Moça, você é machista e contrárias, por exemplo, à ressignificação do termo "vadia", entre outros. Nada contra essas opiniões. Absolutamente, eu concordo com diversos pontos. Mas as críticas ao transfeminismo por esses dois critérios esbarram nos fatos que são:

a) vocês consideram que mulheres não podem ser acusadas de serem machistas, assim como lésbicas não podem ser acusadas de lesbofobia, mas:
b) muitas pessoas integrantes do transfeminismo são mulheres e;
c) muitas dessas mulheres integrantes do transfeminismo são lésbicas, ou seja:
d) isso não faz dessa acusação uma grande contradição?

Mas tudo isso se resolve com a constatação de que:

a) vocês não reconhecem as mulheres integrantes do transfeminismo como mulheres [e, portanto, nem como lésbicas], e isso significa que:
b) vocês são transfóbicas, e:
c) se vocês querem criticar a corrente com base em lesbofobia/misoginia, vocês estão assumindo que são transfóbicas. Se vocês não querem admitir a transfobia, a crítica perde todo o seu sentido.
d) ou seja...?

Então, o resumo do post de hoje é basicamente:

a) Machismo não se trata apenas de ter uma opinião ruim sobre mulheres, mas de uma opressão estrutural que prejudica diretamente mulheres.
b) Não culpe as classes oprimidas por suas correntes, sendo que não foram elas que voluntariamente se algemaram.
c) Isso não é apenas sobre igualdade. [pensar mais criticamente sobre o que queremos dizer com "igualdade"]
d) Opressão é estrutural. É sistemático. Não seja uma pessoa patética assumindo que é oprimida por razões descabidas [aviso especial para o povo classe média da vida].

Obrigada pelo seu tempo gasto nessa leitura. Não sei se consegui manter minha coerência e meu ritmo do começo ao fim, mas acho que consegui me expressar mais ou menos como queria. Obviamente, eu não sou a dona absoluta da verdade e esse blog não tem nada de acadêmico, então nem pense que eu digo todas essas com respaldo teórico. Minhas opiniões são fundamentadas na minha vivência pessoal e nos conhecimentos que adquiro aqui e ali, e você não é obrigada a concordar com elas. Apenas não é.

Isso é só um blog, isso é só um texto meu.
Novamente, grata pelo seu tempo e paciência <3

Sexismo, racismo, capacitismo, homofobia, gordofobia, transfobia e "ódios no geral" [?] não são permitidos. Você será convidado a se retirar.
[fonte: achei no Pinterest]

domingo, 20 de outubro de 2013

"Não fica natural" e outras desculpas esfarrapadas

Nicki Minaj - fiz esse post pensando em como ela era vista, então...

Quando eu era mais nova, assinava Capricho. E um dia chegou uma Capricho cuja matéria principal de beleza era sobre pintar os cabelos. Como pintar, que cores pintar, sugestões, dicas, etc. E então teve uma enorme tabela de duas páginas que cruzava cores de pele com cores de cabelo "aceitáveis" para aquelas determinadas cores de pele. Havia ainda uma foto de uma celebridade com aquela cor correspondente com o cabelo correspondente quando o resultado era "ok" e um desenhinho de uma bomba quando o resultado não era "ok".

Eu sei que o propósito era "mostrar cores que caiam como ~nasci assim~", mas ainda assim soava terrivelmente errado.

Primeiro porque a distinção de cores me soava confusa, porque eu - que sempre fui descrita como "morena clara" - me deparei com uma foto de Angelina Jolie representando pessoas ~morenas claras~ com a minha cor de cabelo (castanho escuro) e eu totalmente não consegui me identificar com ela. Aí vamos aos detalhes óbvios: pessoas negras não poderiam ser loiras, porque não seria natural (a menos que você tivesse muita atitude!), nem ruivas, e por aí segue. Enfim, restrições de cores capilares baseadas na cor de sua pele. Mas você nem acha isso um problema, certo? Eu tenho certeza que você está acostumada com isso. Todas nós estamos. Eu li Capricho durante toda a minha infância e adolescência, e aprendi de cor e salteado todas as cores de cabelo que me eram permitidas e todas que não, não eram permitidas porque... eu não era branca o suficiente. Eu absorvi esses conceitos. Passei anos da minha vida acreditando neles. Acreditando piamente que pessoas que não fossem brancas feito porcelana nunca poderiam ficar bem com cabelos platinados. Acreditando, inclusive, que cores fantasia caem melhores em pessoas brancas do que em qualquer outra cor de pele.

Eu passei minha vida toda escutando que meu cabelo era problemático. Porque ninguém sabia cortar ele direito e porque eu aprendi, na Capricho (inclusive), que se eu quisesse perfeitos cachos, era legal comprar um baby-liss para definir os cachos! Eu adquiri horror aos salões de beleza não apenas pela minha antipatia natural à lugares do gênero, mas porque simplesmente as pessoas não param de oferecer toda uma série de relaxamentos. Eu perdi a conta de quantas matérias eu li sobre como cuidar dos meus cabelos que começavam com chamadas como "como domesticar/domar/controlar seus cabelos!". Eu cresci ouvindo pessoas distinguirem "cabelo bom" de "cabelo ruim" e, acredite, uma criança sabe perfeitamente qual cabelo é bom e qual cabelo é ruim. Quando eu tinha quinze anos, foi o auge da moda de todas as meninas usarem chapinha e essa, especificamente, nunca aderi - não que passasse ilesa por ela. Eu ouvia coisas sobre como eu "deveria arrumar meu cabelo" que significava "escová-lo, alisá-lo, domesticá-lo". Não que eu não tentasse "abaixar seu volume": eu tentava. Mas meu cabelo simplesmente nunca se adequou à essa norma.

E então mesmo hoje eu vejo pessoas falando sobre que alisamento é uma questão de "praticidade". Porque cabelos lisos são "naturalmente" mais fáceis de se lidar. Porque cabelos crespos são inerentemente problemáticos, difíceis, ruins de se lidar. A textura é considerada complicada, ninguém sabe "como cortar", "não tem muito o que fazer".

Certa vez, esse ano, eu vi em um grupo de cabelos coloridos uma garota de pele morena (palavras dela, não minhas) que perguntava se poderia ficar bem com cabelos de cores diferentes. Não foi a primeira, nem a última a perguntar e a reação, em geral, foi positiva. Houve, porém, uma única pessoa que disse à ela para "pintar com cores frias", porque "cores quentes não ficam bem em peles morenas, como rosa ou laranja". Bem, uma busca na internet, essa linda, confirmou para mim o quão essa menina estava terrivelmente errada.

O negócio é que a menina acreditava que existia cores específicas que caíam bem ou não para uma determinada cor de pele. Talvez algumas pessoas não entendam a relação entre "limitar determinadas cores às peles morenas/negras" e "cabelos crespos serem considerados ruins". Bem, a relação é simples: as duas coisas são diretamente ligadas ao racismo. E... ao capitalismo. Como isso procede? Bem, é extraordinariamente simples. Não é paranóia minha quando falo de capitalismo: não se pode pegar uma opressão e fingir que ela não existe para servir à outra. Simplesmente... não dá. E quando discutimos questões relacionadas à beleza, capitalismo entra MUITO no jogo.

(mas sempre tem alguém de mimimi mandando ir pra Cuba ou defendendo capitalismo com unhas e dentes com argumentos retirados da Veja e, cara, de boa, apenas sai do meu blog)

é natural. ponto. bj. fonte da foto: dailymail
1. Porque não faz sentido limitar cores de acordo com a cor de pele.

Se você quer parecer ruiva natural estilo capa de revista, até faz sentido que as pessoas exijam uma brancura a la Lily Cole ou Marina Rui Barbosa - mas sabe de uma? Existem pessoas negras que são ruivas naturais. Assim como existem pessoas negras que são loiras naturais, sabia? Existem pessoas de muitas cores de pele com muitas combinações incríveis com cores de cabelos incríveis. Talvez algumas combinações sejam mais incomuns que outras - sim, eu sei que pessoas brancas ruivas são muito, muito mais comuns que pessoas negras ruivas (como comprova a minha dificuldade de achar fotos ilustrativas, especialmente em páginas brasileiras. Mas tive um pouco mais de sucesso e descobri, inclusive, que Malcom X tinha cabelos considerados ruivos, ainda que num tom mais escuro, o que me foi surpreendente). Mas o fato é que EXISTE.

E se existe...
... é natural.

Conclusão: se é natural, cabeleleiro, revista, portal de moda, Papa nenhum pode te aconselhar para "não pintar" de loiro porque "não é natural". Pessoas negras e ruivas existem. Pessoas negras e loiras existem. Existem naturalmente e existem independentemente do que você acha delas ou não. Existem lindamente por aí e não precisam provar a existência delas à você. Mas se você precisa de um testemunho em primeiras pessoas, bem, eu já conheci pessoas negras e loiras naturalmente. "Mas pode ser descolorante, Luna": não, não pode, porque elas eram pessoas de menos de dez anos que estudavam em uma escola que minha tia dava aula. Não tinham dinheiro sequer para ir na escola, às vezes, que dirá para um descolorante. Era loiro natural e não precisei ser cabeleleira para saber disso. Mas se isso não te convence, bem, uma busca no Google te convence ;)

O segundo ponto de porquê limitar cores de acordo com a cor de pele é ridículo: isso simplesmente não acontece com pessoas brancas.
Você não vê ninguém falando para pessoas brancas não pintarem seus cabelos de vermelho-Ariel-Princesa-da-Disney. Você não vê ninguém falando para pessoas brancas para não pintarem de rosa ou verde porque "vai ficar estranho". Sim, essas pessoas enfrentam preconceitos e são consideradas "diferentes", mas simplesmente não é na mesma proporção que pessoas negras. Ninguém fala à uma pessoa branca que é ridículo ela platinar seus cabelos até ficarem brancos, e ninguém questiona a "naturalidade" disso - ainda que, naturalmente, pessoas normalmente tem cabelo inteiramente brancos quando a) são albinas b) todos os fios se tornam brancos depois de certa idade. Mas Christina Aguilera é considerada linda e maravilhosa com seus cabelos perfeitamente platinados e Nicki Minaj é considerada estranha e bizarra.

A parte bizarra dessa história é quando se estende para cores completamente diferentes como magenta ou verde-cor-de-mato. Ninguém nasce com cabelos cor-de-rosa, sabe? Seria lindo, mas ninguém nasce. Ninguém tem cabelos naturalmente azuis da cor do mar. Não existem genes que confiram um belo púrpura ou turquesa naturalmente. Isso é inviável. Para obter cabelos nessas tonalidades, é um processo que envolve química. É um processo artificial usando corantes artificiais, criados em laboratórios. Então, cara, pessoas brancas e pessoas negras tem exatamente a mesma probabilidade de terem cabelos fantasia naturalmente que é:

zero.

Fotografia por Rodney J. G.
Mas mesmo assim eu tenho que me deparar com pessoas que acreditam piamente que cabelos rosa "só ficam bem" em pessoas brancas, pressupondo que elas fiquem "mais naturais". Então. Se seu argumento de naturalidade foi pro saco, então...
... sobra o argumento da estética.

E, bem, ele é extremamente vazio porque os nossos conceitos do "o que é bonito e o que é feio" são construídos pela sociedade. Não estou falando do papo de mulheres de cinturinha e homens exalando testoterona numa louca corrida de acasalamento aqui. Estou falando de pessoas brancas serem consideradas bonitas e pessoas negras não. Estou falando aqui de pessoas brancas terem seus diferentes visuais validados e ditos como "bonitos", "diferentes", "ousados" e pessoas negras com exatamente as mesmas modificações visuais serem consideradas "esquisitas", "bizarras" ou (sim, já vi) do "ghetto". Bem, eu acho óbvio que isso é um exemplo de racismo.

Não faz sentido você - sendo uma equipe de redação de uma revista como a Capricho, por exemplo, ou uma pessoa que trabalha em um salão de beleza - afirmar que "pessoas negras não ficam bem com tais cores" porque "não fica bonito". Nem todas as pessoas brancas ficam bem com cabelos loiros e nem todas as pessoas brancas ficam bem com cabelos curtos, mas duvido que você demonstre a mesma relutância, certo? Aposto que você consegue pensar em cinco exemplos de celebridades que usaram algo parecido (e deu certo) e pode tentar dar certo. Mas então você é tão relutante sobre "pessoas negras", ignorando completamente que elas possuem diferentes tonalidades de pele, diferentes traços, diferentes texturas de cabelo e, principalmente, diferentes personalidades. Quando você diz que "pessoas negras não ficam bem com cores quentes", como afirmou a menina que comentei no início do post, você está ignorando a imensa diversidade que existe dentro das pessoas negras. Na real, você está imaginando UMA pessoa negra que, por acaso, não fica bem com um cabelo ~rosa-choque~ e achando que todas as outras são iguais à ela e, portanto, sua ideia se tornaria válida.

Mas sabe de uma?
As pessoas não são iguais.

Você não vê pessoas brancas como iguais uma a outra. Você consegue enxergar diferenças entre Mari Moon e Audrey Kitching. Você consegue imaginar que determinadas coisas fiquem bem em uma e não em outra. Você não diria para elas para "não pintarem seus cabelos de preto porque pessoas brancas não ficam bem de cabelo preto", diria?
Então por que você faz isso com pessoas negras?

Minha irmã que achou a foto lá no Cabelos Coloridos da Depressão, mas não merecem link não porque colocam uma tag horrorosa em todas as fotos como se as fotos fossem propriedades da página e não retiradas de tumblrs gringos rs
2. Porque meu cabelo não é difícil e porque é conveniente vocês acreditarem que ele é.

É óbvio que a indústria da beleza lucra pra caramba. Academias para moldar seu corpo, suplementos, remédios emagrecedores, químicas alisantes, cremes de todos os gêneros, bases, batons, sombras, primers, implantes de silicone, rinosplatias, botox, preenchimento com colágeno, cremes anti-rugas, etc, etc, etc. Você compra revistas que te ensinam dietas milagrosas, você paga profissionais para te depilarem e escovarem seus cabelos, você paga por spa para relaxar e desintoxicar seu organismo, você paga por academia para fortalecer seus glúteos, etc. E tudo, absolutamente tudo, vai girar em torno de como é importante você fazer isso. De como malhar três vezes por semana e fazer as unhas é a mesma coisa de "se cuidar". A mídia - e aqui eu não uso ela como uma entidade malvada, mas como uma palavra para designar revistas, programas de TV e propagandas - vai se esforçar bastante para te dizer que você consumir tudo isso significa que você se ama, se cuida, se protege.

Os argumentos são todos:
"é pela higiene"
"é pela estética"
"é pelo cuidado, porque se você se ama, então você faz isso"

Chega à um ponto que acreditamos que fazer as unhas é a mesma coisa que "cuidar de si". E quando uma celebridade apresenta pelos das axilas não devidamente raspados ou o esmalte descascado, pode ter certeza, vai ter aquele zoom nos dez tablóides tratando o "desleixo" e "descuido" da celebridade como um escândalo, em letras garrafais e piadas maldosas, e pessoas se sentirão escandalizadas, porque é óbvio que uma celebridade tem a obrigação de se manter integralmente impecável e é óbvio que temos o direito de rechaçá-la quando ela foge à norma. Assim como nós também devemos nos esforçar para nos adequar à norma, enquanto possível, e criamos relações problemáticas com determinadas coisas quando não nos sentimos adequadas: como, por exemplo, quando temos problemas com a comida, sentindo culpa em "comer", porque a sensação de "se sentir gorda" é persistente. Você chega à um ponto que começa a odiar seu corpo por ele fugir aos padrões restritos da sociedade - magro (mas perfeitamente saradinho) branco, sem estrias, sem celulite, sem marcas, sem pêlos, etc, etc, etc. E... pronto.

Você percebe o ponto que chegamos aqui?
Nós temos uma sociedade que se odeia.
Nós temos pessoas que odeiam seus próprios corpos. E nós temos pessoas que desejarão se enquadrar seus corpos nas normas, porque se sentem infelizes fora delas. Porque elas vêem as celebridades sendo rechaçadas quando fogem às normas, e elas mesmas são rechaçadas - ignoradas, humilhadas ou mesmo perdem empregos - pelos seus corpos fora da norma. Todo mundo adora falar de como obesidade leva à depressão, mas o que você esperava? Pessoas gordas são frequentemente humilhadas, ojerizadas, ridicularizadas em todos os segmentos da sociedade, não conseguem empregos, são vistas como "preguiçosas" ou "nojentas" e vamos lembrar que os espaços públicos simplesmente não comportam pessoas gordas? Se você encontrar uma pessoa que passou por tudo isso sem sofrer um tiquinho, eu te dou um chocolate. Voltando à questão: nós temos, então:

a) pessoas que odeiam seus corpos;
b) uma imensa e maravilhosa indústria que vai vender à essas pessoas justamente o que elas "precisam" para... se adequarem.

Curiosamente... a mesma indústria que estimula o pensamento de que somos erradas. De que nossos corpos estão errados. E isso vira um ciclo vicioso. Isso é tão lucrativo que você não tem nem ideia. O faturamento líquido de impostos em cima de produtos de beleza, em 2009, chegou a 24,9 bilhões de reais. O Brasil já é o terceiro maior consumidor de produtos do gênero, e a gente perde só para os EUA e Japão. Isso é... apenas impostos em cima dos produtos. Eu não falei de lucros dos produtos. Nem falei das academias, nem dos spas, nem dos salões de beleza, muito menos das clínicas onde se realizam procedimentos cirúrgicos. Você consegue imaginar a dimensão disso?

O que cabelos crespos tem a ver com isso? É simples: não vivemos em uma sociedade apenas capitalista. Nós vivemos em uma sociedade racista, machista, transfóbica, etc, etc, etc. Então os padrões validados e veiculados como "aceitáveis" são... surprise! racistas, machistas, transfóbicos, etc, etc, etc! Nada mais coerente à uma sociedade capitalista e racista do que vender produtos que clareiam a pele em países onde uma cor de pele mais clara é praticamente um status social mais elevado. Nada mais lógico que dizer às mulheres, uma classe historicamente oprimida, que elas precisam se depilar, se maquiar, emagrecerem e tudo o mais para arrumar homens e que isso deve ser sua prioridade na vida.

fonte: jirano
Nada mais conveniente se aproveitar do racismo para afirmarem que nossos cabelos são "difíceis" de se lidar, monopolizar todos os meios de comunicação e então oferecer milhares de alternativas - caras e ligeiramente complicadas - para "domesticar" nossos cabelos. Nunca se esquecer dessas palavras, associando nossos cabelos à "selvageria" e "problema" - palavras associadas às pessoas negras desde que europeus cara-pálidas se deram ao trabalho de escravizar diversos povos africanos. Nada mais conveniente e confortável lucrarem em cima da generalizada desinformação que existe sobre os cabelos crespos. Nada melhor do que pegar determinados cabelos associados à cultura negra (em uma grosseira generalização aqui) e então... embranquecê-los. Porque não basta você encher seus programas de TV e revistas com modelos de cabelos esvoaçantes, você ainda tem que colocar pessoas brancas usando dreadlocks com suas carinhas sorridentes. Você tem que explicar que dreadlock se faz com cera e esquecer convenientemente que dreadlocks são NATURAIS do cabelo crespo.

Não basta você dificultar o acesso das pessoas com seus cabelos crespos às informações realmente válidas de como cuidar dos seus cabelos, você ainda tem que pegar estilos específicos relacionados aos cabelos crespos e vendê-los como se fossem da cultura branca e ocidental. Quer dizer, isso é lucro para quem? Não para mim.

O fato é que quando comecei a pesquisar na internet sobre como cuidar dos meus cabelos, eu percebi que as informações eram muito diferentes do que eu encontrava na mídia tradicional. A verdade é que cabelos crespos não são "mais difíceis", apenas demandam cuidados diferentes. Nós aprendemos que precisamos domesticá-los à base de muito creme, usar baby-liss para definir os cachos e que eles precisavam serem "perfeitamente" cacheados e, na real? Não precisa. Você não precisa nem lavar os cabelos todos os dias, assim como você não precisa penteá-los todos os dias. Eu vejo milhares de meninas reclamando que sofrem com dor porque penteiam por horas e horas, desembaraçando-os, mas você sabia que muitos cabelos cacheados costumam formar cachos mais estruturados quando você não penteia? Você sabia que as toalhas felpudas que usamos normalmente acabam agredindo nosso cabelo, deformando os cachos, e é mais legal você usar uma camiseta simples de algodão que absorve melhor a água e é mais gentil? Não, essas coisas não aparecem o tempo todo na mídia tradicional, não é? Aparecem em portais específicos sobre o assunto, mas não são tópicos correntes em uma revista Cláudia da vida, não é?

Mas interessa à essa indústria tão lucrativa vender esse ideal de "cabelo difícil que precisa ser domesticado". Interessa vender atributos como "volume" como indesejáveis.
Senão...
... o que eles vão fazer com os mais de cem tipos de escova? O que eles vão fazer com todos os produtos que prometem abaixar o volume? O que eles vão fazer com tudo isso que você não vai precisar? Oh... não se pode ter prejuízo nesse mundo. Simplesmente não rola.

A verdade é essa: seu corpo é natural. Seu cabelo é natural. Tudo em você é perfeitamente natural. Nada está onde fora de onde deveria estar: seu peso, seus cabelos, seus olhos, sua cor de pele. Ninguém pode lhe dizer o contrário. Uma sociedade que lhe diz isso só está fazendo isso porque ela lucra em cima do seu desajuste social. Ela lucra em cima da falta de auto-estima de milhares de adolescentes e do medo do envelhecimento de milhares de mulheres. É do interesse da nossa sociedade em que vivemos manter um padrão inatingível de um corpo ideal, nos fazer financiar esse padrão e julgarmos uma a outra por não alcançar esse padrão. Veja bem, quando falo "sociedade", não falo de uma entidade maligna estilo Olho de Sauron. Eu falo de pessoas.

As pessoas que são publicitárias, estilistas, donas de companhias milionárias de remédios de emagrecimento, farmacêuticas que inventam tais drogas, donas de academias e spas de desintoxicação, todas essas: elas também foram afetadas com esse modelo que praticamente se autoreproduz. Visualizá-las como coisinhas malignas que se propõem a destruir o mundo não adianta. Não estamos em uma situação bem x mal. Mas adianta refletir sobre como isso é feito e porquê isso é feito. Vale refletir para quem interessa manter esse padrão e para quem interessa destrui-lo. Vale refletir quem está se beneficiando com isso e quem não está.

E... vale começar a destrui-lo você mesma. (✿◠‿◠)


Ilustração linda para encerrar bem o post. Eu peguei da página Pretty Black Pastel, mas perdi o link, não acho mais a imagem e não sei quem ilustrou :(

domingo, 6 de outubro de 2013

Para se ler nos dias ruins (☆^ー^☆)

"Você pode fazer isso" (fuckyeahsubversivekawaii)
Esse texto é para você: a pessoa que eu sei que chora eventualmente ou que não chora nunca ou chora sempre. A pessoa que se pergunta se está fazendo tudo certo, a pessoa que procura por uma maneira de aprender a se amar, a pessoa que passou por maus bocados nessa vida e só quer paz.

A verdade é que: você pode aprender muita coisa sobre movimentos sociais e mecanismos de opressão. Você pode ser capaz de saber conscientemente que está tudo bem ser gorda, que está tudo bem ser gay, que está tudo bem ter depressão, que está tudo bem ser qualquer coisa. Você pode passar anos sabendo que seu reflexo distorcido no espelho nada mais do que produto de uma sociedade doentia e obcecada por padrões de beleza, você pode saber perfeitamente que seu relacionamento amoroso atual tem doses de sentimentos possessivos e manipulações psicológicas em um nível alarmante e saber que isso não te faz bem, você pode saber que você tomou a melhor decisão do mundo para você e sabe que o julgamento em cima das suas decisões estão baseadas em ódio e controle. Você pode saber tudo isso.

Nada disso te impede de se machucar.
Nada disso te blinda das nossas pequenas crueldades diárias.

Para você,
minha querida pessoa que sofre agressões e reproduz agressões - com outras mesmo não querendo, com você mesmo odiando mais ainda a si.
Esse texto é inteiramente escrito para você e, talvez, eu consiga atingir uma ou duas pessoas. Isso me fará feliz, por ora.

Eu queria te dizer que tudo ficará melhor. Que as coisas se ajeitarão e um dia seremos uma linda comunidade humana que viverá de hortas comunitárias. Sem trabalho escravo. Sem partidos religiosos esquisitos que vociferam contra liberdades individuais o tempo todo. Sem duvidosas alianças políticas. Um mundo em que você sinta que se integrou perfeitamente, um mundo que seja legal fazer parte, um mundo maravilhoso, como uma utopia. Eu queria te dizer que se a gente lutar muito agora, vamos conseguir atingir esse paraíso daqui a alguns anos. Que talvez a gente consiga ver tudo isso antes de morrermos. Mas seria mentiroso da minha parte: as nossas chances não são as melhores, o nosso movimento ainda tem rachaduras difíceis de se consertar e o outro lado da batalha tem recursos e pessoas com muito mais poder do que nós. Foram historicamente preparadas para isso, ao passo que estamos em desvantagem porque isso aqui não é uma guerra: é um massacre, físico e psicológico.

Mas eu queria te dizer bem baixinho:
você não é a única pessoa que se sente sem esperanças.
você não é a única pessoa que sente ódio de como mundo foi feito.
você não é a única pessoa que queria que as coisas fossem diferentes.
você não é.
"Lembretes: você é uma ótima pessoa. / eu amo você muito, muito mesmo / você merece amor / você merece atenção / você merece respeito / e você merece muito, muito mais / está okay bagunçar / está okay estar errada / está okay estar chateada / está okay chorar / você é amada"(fuckyeahsubversivekawaii)
Eu sei que tudo parece muito ruim, e eu sei que dá vontade de abandonar tudo e viver no meio do mato. Eu sei que é horrível viver em um mundo em que você viva em permanente estado de alerta, e eu sei que às vezes não há saída a não ser desabar. Muitas pessoas morreram em todos esses anos, e morreram por serem quem são, por terem gritado sobre quem são, por terem se recusado a viver como todo mundo queria que vivessem. Seus nomes foram apagados da nossa história, suas histórias esquecidas. Elas não se mataram, e você sabe disso. Nós matamos elas. Nós, enquanto sociedade, assassinamos pessoas todos os dias, seja desovando travestis em valas, seja destruindo a auto-estima de mulheres estupradas, seja acabar com qualquer perspectiva de futuro de uma criança negra e pobre. E então chamam de suicídio a morte de tantas pessoas que tomaram muitos remédios, por exemplo, como se a morte fosse uma escolha no caso delas, mas eu e você sabemos que não foi. Elas simplesmente terminaram o serviço que nós começamos. E eu sei que a boca fica seca e a garganta dá um nó de ódio a cada notícia de estupro, a cada comentário defendendo estupradores, a cada página de ódio, a cada discussão estúpida, a cada pai e mãe que não aceita, a cada escola que expulsa, a cada namoro e marido e homem de qualquer gênero que violenta, a cada emprego negado, a cada bala perdida de nobres policiais atirada coincidentemente em pessoas negras, a cada amizade perdida, a cada pessoa que desaponta. Parece ruim e parece que não se pode lidar com isso.

Vou ser honesta: às vezes não dá para lidar.

Às vezes a cota simplesmente extrapola, e então eu só posso lhe dizer: não vai passar, mas é possível não morrer de desgosto. É possível ainda ficar de pé e querer alguma coisa melhor. É possível você ainda continuar com raiva e essa raiva lhe fazer bem, é possível você ainda continuar insistindo em seus ideais, é possível. E eu sei que essa humanidade, linda e maravilhosa do jeito que é, não tira uma folga de foder as minorias diariamente, mas é possível conseguir alguma melhora enquanto vivermos. Pode acabar não sendo o lindo mundo que imaginamos, mas é possível que alguma coisa melhore. Não, você não errou ao desejar um outro mundo, uma outra maneira de fazer as coisas. Não, você não falhou ao vacilar e acabar se odiando mais uma vez. Não, você não está sendo hipócrita quando fala tanto da importância do amor-próprio e acaba se encontrando em relacionamentos possessivos e controladores que não sabe como entrou neles. Não, você não é incapaz e sim, a gente te ama.

A gente te ama.
Você não sabe disso, mas a gente te ama.

Meu bem:
eu queria te motivar, mas acho que não consegui. A real é que a sensação de dar murro em ponta de faca é forte, forte demais para eu ignorar. Mas o que vai acontecer se eu simplesmente achar que nada vai mudar de qualquer jeito e dar as costas? O que vai acontecer se eu me permitir ignorar os erros dos nossos ancestrais? O que vai acontecer se eu ficar em silêncio? Talvez o mundo não mude, mas e eu? E você? E se você cair, eu caio junto? Se eu cair, tu cai também?

E se nenhum de nós cair?
E se a gente insistir em ficar de pé e ainda chamar todo mundo pra ficar de pé?

E se você pergunta: e se eu tropeçar e achar que não dá mais?
Tudo bem.
Ainda somos pessoas e somos pessoas vulneráveis. E não há vergonha em admitir isso. Porque estamos em desvantagem, meu bem, e todo mundo sabe disso.

Quando você tropeçar, a gente te segura. Quando você quiser desistir tudo, a gente te entende. Quando você quiser estar na linha de frente, a gente te dá cobertura. Quando você quiser desabar e chorar num cantinho, a gente te abraça.
Mas não se sinta como se fosse a única pessoa do mundo a lidar com essas coisas.
Não se sinta só.
Você não está, acredite em mim :)

"Pessoas que fazem você se sentir mal sobre você mesma não são pessoas para você" (fuckyeahsubversivekawaii)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Algumas considerações sobre porquê eu não ser do rolê misândrico

Aviso: isso aqui foi feito como reflexões minhas no meio feminista. Não tolero gente de fora querendo desqualificar o movimento na base do "mimimi misandria" e justificando coisas esdrúxulas com base nisso. Tô nem aí pra suas lágrimas de machinho opressor. Minhas considerações sobre misandria são apenas algumas observações e incômodos pessoais meus, não sobre os seus sentimentos.

Primeiro que eu quero ressaltar: eu acho compreensível que uma mulher deteste homens. Vamos apenas botar a mão na consciência e lembrar que praticamente toda mulher tem uma história de terror envolvendo abusos e assédios e eles são cometidos por homens. Acho compreensível que uma mulher tenha horror à ideia de ficar sozinha com homens, odeie homens no geral, que sinta medo de homens. Não se retira o direito dela detestar homens por diversos motivos. Assim como não se retira o direito de pessoas transgêneras não quiserem se relacionar com pessoas cis por temer abusos e não se retira o direito de pessoas negras se reunirem em espaços seguros sem pessoas brancas ficarem insistindo que "não vêem cor". Toda e qualquer minoria tem direito de se resguardar e temer seu opressor e isso não deve ser questionado.


Definido esse ponto, então vamos para o que interessa: misandria, ao meu ver, tem o mesmo valor que heterofobia ou racismo reverso. Ou seja, não se sustenta como uma ideologia. É uma reação legítima e justificável, mas não é uma ~~ideologia~~ que deve ser tomada como uma pauta. O movimento LGBT não pode trabalhar com a heterofobia como um ideal. Assim como o movimento negro não pode trabalhar com racismo reverso. Me soa lógico que o feminismo não possa trabalhar com misandria como se ela fosse uma parte institucional do movimento. Mas por quê eu digo isso?

A misandria é basicamente ódio e aversão aos homens. Tornar isso como algo parte integrante do movimento, como uma de suas principais características ou, indo mais extremamente, tornar como um pilar ("eu sou feminista porque odeio homens", por exemplo) significa polarizar o mundo em uma divisão binária que é basicamente o homem oprimindo a mulher. Eu duvido muito que mulheres que declaram que são seriamente misândricas estejam pensando em pessoas não-binárias quando repetem esse discurso, realmente duvido. Acontece que eu vejo algumas falhas nessa lógica, por questões muito simples. A primeira delas é a óbvia falta de intersecionalidade.

Aqui vou dizer uma coisa que vai incomodar, incomodar pra cacete, mas acho importante dizer: querida, a opressão de homens em cima de mulheres não é a mais importante de todas. Não é mais importante falar de homens oprimindo mulheres do que pessoas brancas oprimindo negras ou então pessoas cis oprimindo pessoas trans. Então a misandria como algo a ser inserido no movimento como característica vai totalmente contra isso, porque faz pressupor que a opressão de uma classe é mais importante do que as outras. E não é. Cara, não é. Por quê seria? Isso aqui não é uma Olímpiada de Opressões. Não é como se houvesse uma classe mais oprimida. Mulheres e pessoas trans e negras e animais e com algum tipo de deficiência, todo mundo é fodido pelo sistema em algum grau. Então não vou entender se você chegar pra mim e falar "olha, sou feminista porque eu odeio todos os homens", porque vou te perguntar: todos?

Todos?

Todos os homens negros, trans, gays, bi, com deficiência, o caralho a quatro? Olha, tenho que ser sincera: como falei lá no começo, eu não me importo que você odeie toda e qualquer pessoa que se identifique como homem se isso é uma postura individual sua, só sua. Se isso é um trauma seu, sabe, não sou eu que vou apontar o dedo pra tua cara e te julgar porque cada um sabe da sua cruz. Mas eu acho extremamente inválido colocar isso como se ser misândrica fosse algo que uma feminista tenha que ser, porque considera que lutar por mulheres seja mais válido, mais legal, mais importante do que lutar pelas pessoas negras e foda-se o racismo que caras negros sofrem. Acho extremamente inválido considerar que todos os homens da face da terra sejam automaticamente 100% privilegiados em todas as áreas do universo, sem levar em conta que eles podem ter características específicas que os levem a sofrer outras opressões, como ser gay ou ser negro. É disso que falo quando aponto a falta de intersecionalidade: eu não vejo esse ponto debatido entre feministas que se autodenominam misândricas em níveis que não me soam como uma "brincadeira", mas como algo mais sério e profundo.

Mas, talvez, isso não seja debatido porque é "óbvio" que o homem odiado é o Sr. Combo de Privilégios: o branco, hetero, cisgênero, heterossexual, classe média, com todas as funções corporais perfeitamente habilitadas para viver em sociedade sem nenhum problema. Não vou nem me dar ao trabalho de defender essa classe: sério, não perco meu tempo. São poucas as vezes que você encontra um que resolva descer do seu ~~~pedestal~~~ e se dignar a ser decente. Mas vou aproveitar o gancho só para falar dos meus outros problemas de se considerar a misandria e aí eu tenho praticamente cem por cento de certeza que um monte de gente não vai gostar do meu ponto porque eu corro o risco de soar ~~~defensora dos homens coitadinhos~~~ o que não é a minha intenção, mas vamos lá.

O primeiro ponto: eu acredito que homens podem ser feministas. Eu entendo que várias feministas discordem de mim e elas tem as suas razões para isso, e tenho certeza que são razões legítimas e tudo o mais. Não me atrevo a desqualificar. Eu apenas tenho razões diferentes que me levam a acreditar que homens podem ser feministas, simplesmente porque eu acredito que qualquer pessoa pode ser feminista. Eu acredito que feminismo é um movimento pela libertação da mulher enquanto gênero, pela igualdade dos gêneros, pelo fim da misoginia e de tudo que subjuga o gênero feminino. Eu acredito que o feminismo é um movimento para empoderar as mulheres, sejam elas cis, trans, o caralho a quatro. Eu acredito nessas coisas, eu tenho que acreditar nessas coisas, porque senão - pra mim - não faz sentido ser feminista. Então, ao meu ver, qualquer pessoa - tendo ela um gênero binário ou não - pode se determinar como feminista por acreditar nessas coisas. Por acreditar em libertação, igualdade de direitos, respeito, empoderamento. 

Eu vejo algumas feministas afirmando que homens não podem ser feministas porque um dia eles sempre jogarão seus privilégios na nossa cara. Porque um dia eles vão falar merda e a máscara vai cair. Eu tenho um ou dois pontos sobre isso:

O primeiro é que eu não acredito que pessoas são primariamente irreversíveis. Eu não acho que um homem, por ser homem, seja incapaz de aprender sobre privilégios, assim como não acredito que seja impossível para uma pessoa cis aprender sobre trans ou uma pessoa hetero aprender sobre pessoas não-heterossexuais. Sim, elas podem falar merda um dia qualquer. Sim, elas podem jogar seus privilégios na tua cara um dia qualquer. SIM, elas tem privilégios. Mas e aí? Eu posso e já falei muita merda na minha vida. Sou uma pessoa cheia de privilégios, já fui elitista, já disse merdas transfóbicas estilo "ela nasceu menino e virou menina", já achei que garotas eram tudo de ruim e que só homem prestava pra amizade, já deixei passar muita merda dita por outras pessoas achando que não era sério o suficiente, etc. E aí? Eu repensei todas essas atitudes. Ainda tenho muitas para repensar. Um homem não pode fazer o mesmo? É impossível à um homem rever as merdas que fala? 

Se é possível para eu, como cisgênera, rever meus privilégios, porque não é possível para um homem fazer o mesmo? Ou cairemos novamente na Olímpiada das Opressões no qual uma é considerada primordial em relação às outras?

Uma vez vi uma pessoa falando que "homens nunca conseguirão se despir dos seus privilégios". Eu diria que, tecnicamente, é impossível você fazer isso. Enquanto você faz parte de uma classe privilegiada, bem, você vai continuar fazendo parte dela até que, sei lá, você deixe de fazer parte dela por motivos especiais e mágicos ou... essas classes sumirem. E enquanto você continuar fazendo parte dela, você vai receber os privilégios dela independente da sua vontade ou não. A pergunta é: você vai se aproveitar disso ou não?

Uma pessoa branca é branca. Ela não pode pintar a cara de preto e ~se abdicar~ de ser branca, por motivos de: é extremamente desrespeitoso, ofensivo e não iria resolver nada. Ela não pode virar uma pessoa negra. Ela pode pintar a cara dela o quanto for, ela nunca será uma pessoa negra. Ela não pode ~~~abrir mão~~~ de ser branca. Não adianta o que você faça, a menos que apareça os Padrinhos Mágicos, essa pessoa continuará tendo uma narrativa de pessoa branca que é completamente diferente da de uma pessoa negra. Mas isso não significa que está tudo acabado e que ela não pode fazer nada a respeito. Significa que ela, sendo pessoa branca, deve reconhecer que possui tais privilégios. Mesmo que ela não possa evitar ser melhor tratada em lojas, por exemplo, ainda assim pode e deve lutar apoiando pessoas negras. Deve ouvir suas vozes e compreender que deve se calar para ouvir melhor quem sempre teve a voz silenciada. 

Uma pessoa com privilégios pode fazer muitas coisas para apoiar um movimento não-privilegiado e não precisa necessariamente se aproveitar deles. Um homem não vai conseguir se despir dos seus privilégios e continuar sendo um "homem sem privilégios", mas é capaz de ouvir e compreender, de desenvolver empatia e compreensão, enfim, de ser uma pessoa que pode apoiar outras. Eu preciso acreditar nisso: que qualquer pessoa pode apoiar outras sem estar necessariamente querendo lucrar em cima disso. Eu preciso.

No que isso se relaciona ao conceito de misandria? Lembrando que me refiro à misandria como se fosse uma pauta específica do movimento. Bem, se misandria se torna uma parte característica do movimento, suponho que não se possa incluir homens no feminismo como ~apoiadores~ (que é o papel máximo que se possa cumprir). Isso significa exclui-los do movimento até mesmo do papel de pessoas que apóiam e compreendem. E isso significa uma pergunta: QUAIS homens excluiremos? Que tipo de critério utilizaremos para salvar a intersecionalidade tão necessária no movimento? Ou apenas os Senhores Combos de Privilégio serão automaticamente excluídos? Hmm, eu não sei como responder à essa pergunta. Sério. Eu tenho certeza que desejar excluir essas determinadas pessoas do movimento é legítimo, mas eu - eu, particularmente eu - não vejo como algo nocivo que essas pessoas aprendam sobre o movimento. Isso não significa que eu quero abraçá-las e colocar uma coroa em suas cabeças por serem tão dignos, eu só acho que é legal que elas aprendam sobre isso. Acho legal que pessoas se identifiquem com o feminismo, sejam elas diretamente afetadas ou não. 

Eu meio que não gostei de escrever esse texto, porque eu me sinto como se estivesse me indispondo com um monte de gente que se alinha politicamente à muito do que penso e eu realmente detesto apontar alguma coisa no feminismo que uma pessoa escrota possa pegar como argumento para desqualificar o movimento, então eu tentei ser menos assertiva e mais reflexiva. Vejam bem, eu quero ressaltar algumas coisas:

a) Eu não estou falando de aprovação masculina. Não estou sugerindo, nem por um segundo, que o movimento PRECISA de homens para que eles nos aprovem. Não disse isso, não quero passar essa interpretação, não concordo com isso;

b) Eu totalmente NÃO ESTOU falando de PROTAGONISMO. Estou presumindo que seja óbvio ululante que o protagonismo do feminismo pertença somente à mulher. Estou falando do papel de apoio. Eu sei que repeti muitas vezes durante o texto, mas quero reforçar isso até ficar chato, só para garantir que não seja mal-interpretada.

c) Eu sou 100% a favor de espaços seguros. O quer dizer que, sim, apóio grupos inteiramente voltados para mulheres cis e trans, mulheres trans, mulheres negras, mulheres com deficiências, mulheres mães, etc. Eu apóio que esses grupos específicos sejam segregados, voltados exclusivamente para as necessidades daquelas pessoas que precisam se sentirem acolhidas entre seus iguais e compartilhar suas experiências sem ser ouvida por uma pessoa pertencente à classe opressora (mesmo que a pessoa, em questão, não tenha feito nada contra ela). Eu acho importante esses espaços seguros para dividir vivências e se empoderar. Não questiono isso e não é disso que estou falando. Estou falando do feminismo como um todo ou, pelo menos, de algumas de suas correntes.

d) Esse texto é apenas minha opinião, um desabafo pessoal, formada a partir de observar diversas outras feministas e suas relações com "misandria". Não significa que seja definitiva, porque ainda estou pensando no assunto. Eu não sou contra a misandria em si, assim como não sou contra heterofobia ou racismo reverso. Porque eu sei que é uma piada interna, é uma piada que nos permite tirar onda de quem nos oprime. Eu fiz esse texto porque eu observei que misandria estava se tornando algo mais forte do que apenas uma piada, como se fosse algo que motiva a pessoa ao feminismo, e embora eu não tenha nada a ver com os motivos pessoais de cada pessoa ser feminista, eu me senti deslocada porque misandria não me abrange politicamente. Eu não me sinto acolhida pelo feminismo com essa característica impregnada no movimento. Tenho que ser sincera quanto à isso: o feminismo que se basear em misandria não me representa. 

E isso é tudo, acredito eu.

só para lembrar o aviso do começo do post.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Por favor, enfie o seu "você está levando para o lado pessoal" naquele lugar (=^ _ ^=)

Eu estava lendo esse post de Leda (e eu realmente gostaria que você lesse também, porque acho que ler isso vai te ajudar a compreender melhor esse post) e isso me fez pensar. Eu já lidei com todas essas críticas. Embora eu seja uma garota sortuda e eu tenha recebido muito amor de diversas pessoas, muitas delas que me são completamente estranhas, eventualmente há quem diz que eu deveria ser menos inflamada, me doer menos, levar menos para o lado pessoal. É apenas internet, me disseram, não se deixe afetar por isso. Engraçado. Eu não sabia que o mundo deixava de ser mundo na internet. Eu não sabia que eu tenho condições de não levar discussões sobre feminismo para o lado pessoal. Eu não sabia que eu tenho o privilégio de falar sobre misoginia e racismo de forma plenamente racional, como se eu não fosse afetada por essas coisas.

Acho especialmente cruel quando pessoas me dizem para eu não levar para o lado pessoal. A impressão que eu tenho é que acham que eu passo meus dias discutindo feminismo no Twitter e escrevendo posts e mais posts e mais posts sobre misoginia ou transfobia ou privilégio branco porque "eu quero". Porque "é divertido" e eis aqui a novidade: não é. Não é divertido para mim eu abrir o bloco de notas e tentar traduzir a minha raiva e decepção com a humanidade em palavras coerentes. Eu não estou aqui escrevendo compulsivamente porque "é legal", mas porque é necessário e porque não sei viver de outra maneira. Não tenho mais condições de simplesmente dar as costas e ir viver minha vida, e não tenho esse privilégio de fingir que o patriarcado não existe, por exemplo. Eu vivo esse patriarcado 24h, 7 dias por semana. Eu NÃO TENHO essa escolha linda e maravilhosa de ser mulher duas vezes por semana, das 8h às 12h. Sou mulher integralmente, sinto os efeitos da misoginia integralmente. Não faz sentido você pedir para uma pessoa que vive uma situação marginalizada para não levar "para o lado pessoal". É a vida dela. Não tem como ela separar essas questões e deixá-las reservadas em um campo neutro e impessoal. Quando você pede que ela faça isso, você está sendo uma pessoa estúpida, cruel e extremamente perversa.

Eu participo de discussões do gênero desde que eu uso internet em casa. Isso quer dizer: sete fucking anos de debates pela internet. Eu já lidei com pessoas que me chamaram de satanista por ser atéia, vagabunda por defender o direito ao aborto, lésbica como se isso fosse uma ofensa, perdida, nojenta, pecadora, arrogante e toda uma série de xingamentos piores. Já lidei com homens heteros que tentaram me explicar o que era feminismo e como exatamente mulheres deveriam evitarem serem estupradas, homens gays que despejavam toda sua misoginia em mim, mulheres hetero que me odiavam porque eu dizia que era horrível chamar outra mulher de vadia, mulheres lésbicas que afirmavam categoricamente que não se pode confiar em bissexuais. Já lidei com muita gente pela internet, e lidei com muitos argumentos diferentes, mas todos parecidos no que se refere à estupidez. Então seus argumentos não são originais. Você me falar "não leve para o lado pessoal" não me fará considerar que você está certo por um único instante, na verdade, só me fará ter vontade de arremessar você contra a parede e quebrar todos os seus ossos com as minhas próprias mãos.

"Não me diga para me acalmar" - eu não sei onde encaixar o "fucking" na tradução (fuckyeahsubversivekawaii)

"Não seja emocional" diz você falando sobre como eu deveria lidar com meus direitos reprodutivos ou meu direito básico à segurança ou meu direito igualmente básico de ser tratada como uma pessoa decente pelo Estado, pela mídia, pela sociedade. "Você está sendo sensível" diz você sobre meu sentimento de odiar pessoas que fazem piadas de uma cultura que estupra e mata mulheres como eu todos os dias, o tempo todo. "Não se deixe afetar tanto" diz você para mim que já tenho que respirar fundo e ver o Papa, a bancada evangélica, todos esses simpáticos deputados e senadores, jornalistas e humoristas de stand-up, todos esses caras querendo ditar como eu devo viver minha vida. "Isso é só uma piada" e aqui estou eu querendo afiar uma boa faca de cozinha como meu avô sabe fazer tão bem para matar o primeiro cara que me fizer uma maravilhosa piada satirizando o meu corpo? Ou talvez você queira rir dos meus ciclos menstruais? Deve ser engraçadíssimo atribuir qualquer frase ríspida da minha parte à TPM. Pena que não funciona com todas as mulheres, porque (não sei se você sabe) nem todas as mulheres tem TPM (por diversos motivos: elas podem ter corpos tidos como masculinos e não tem ciclos menstruais, outras apenas tem sorte e não sabem o que é TPM na vida delas) mas tenho certeza que isso não é problema e você deve achar um novo e espetacular argumento para desqualificar cada uma de nós. Você sempre vai encontrar uma maneira de nos desqualificar e que maneira melhor poderia existir a não ser taxar as mulheres de "histéricas"?

"Está nervosinha?"
"Oh lá vem a feminista"
"Tá ficando irritadinha"
"Tá histérica"

Vão se foder.

Vão se foder, tipo, MUITO. Vão se foder porque é pior que ignorância. É pior que "não conhecer o feminismo". É pior porque é cruel, é pior porque é má fé, é pior porque é tão perverso quando você desqualifica qualquer coisa que eu diga usando o MEU emocional, tentando me jogar contra eu mesma, tentando me fazer me sentir culpada por se envolver emocionalmente com as minhas próprias pautas, tentando me fazer horrível por sentir raiva, ódio, mágoa e desapontamento. E não pensem vocês que o fato de eu não ter a minha caixa de e-mails recheada de recados de ódio me fará pensar que as pessoas são totalmente amores e simpáticas. Nesse momento, enquanto eu recebo muito amor e carinho (e sou grata por isso), tenho algumas amigas que frequentemente tem seu ask.fm cheios de perguntas invasivas sobre suas genitálias e ofensas e vejo algumas pessoas sendo ofensivas gratuitamente pela internet. Acredite: estou de olho em vocês, eu sei o que vocês estão fazendo e podem nem ter meu nome ali, mas é o meu gênero, é a minha classe, são as minhas condições ou as condições das minhas amigas que você está ofendendo e, acredite, não vou deixar passar só porque não foi diretamente dito para mim.

"Eu acho que você tem coisas mais importantes para lutar"

Sim.
Isso é só uma piada misógina.
Isso é só um filme transfóbico.
Isso é só um livro heteronormativo.
Isso é só uma novela gordofóbica.
Isso é só um anime que incentiva a cultura de estupro.
Isso é só um caso isolado de homofobia.
Isso é só uma lei que limitará o direito ao aborto.
Isso é só uma sociedade patriarcal, homofóbica, transfóbica e opressora em todos os níveis.
Isso é só a vida inteira.

Então, você com seu discurso lindo e privilegiado de "não vejo raças", "trato mulheres com respeito", "apóio gays, contanto que não fiquem desmunhecando", "respeito quem se dá ao respeito", "eu respeito todo mundo, mas mulher é mulher e homem é homem", "se eu fosse negro, me ofenderia com cotas", "acredito na força do trabalho, não nessas esmolas do governo"... você que perde seu tempo dizendo sobre como feministas deveriam ser razoáveis, calmas, controladas e perfeitamente contidas para te educar, ó nobre pessoa, pacientemente e gentilmente sobre como nós vivemos, você que se magoa quando criticamos publicamente, você que faz beicinho, bate o pé no chão e diz "mas não assim! Não generalize! Não somos todos iguais!", você que vomita seu preconceito disfarçado de intelectualismo, você que ri de Rafinha Bastos e Danilo Gentili, você que se recusa a perceber que tem privilégios que eu nunca terei e que eu não posso "não levar para o lado pessoal"...

... vá se foder.

#BONITA DEMAIS PARA ESSA MERDA